domingo, 23 de outubro de 2011

É o fim ou só o começo?

Antonio Luiz M. C. Costa
Sirte, cidade natal de Muammar Kaddafi, sofreu cinco semanas de bombardeios da Otan e de disparos de artilharia de ambos os lados, durante os quais o “fogo amigo” entre rebeldes parece ter feito a maior parte das vítimas entre eles. Sempre em nome de uma resolução da ONU que autorizou a Otan a “proteger civis” por meio de um bloqueio aéreo, logo transformado em intervenção aberta do Ocidente a favor dos insurgentes, quando estes se mostraram incapazes de vencer a luta sozinhos. Isso apesar de a mesma resolução ter proibido o fornecimento de armas a qualquer dos lados.

Grande parte dos sobreviventes estava reduzida a desabrigados famintos entre os escombros – seus líderes religiosos emitiram uma fatwa permitindo-lhes comer cães e gatos, o que normalmente é proibido pelo Islã – quando o Conselho Nacional de Transição (CNT) anunciou sua conquista, às 11 da manhã de 20 de outubro, hora da Líbia (7 da manhã em Brasília, horário de verão). Duas horas depois, às 13h07, o Conselho Militar de Misrata – um comando que apoia o CNT, mas não aceita suas ordens –, disse ter capturado o próprio ditador vivo. Menos de uma hora depois, às 13h53, a Reuters e a Al-Jazira afirmaram que ele estava morto.

Pelas primeiras informações, Kaddafi tinha sido capturado após a última resistência em um “buraco”, pedindo “não atirem”. Depois, foi dito que o acharam em um cano de esgoto, “como uma ratazana” – insulto que ele frequentemente distribuiu aos rebeldes. Disse o CNT que morreu na ambulância, mas suspeita-se de que foi executado após a captura. Um médico que esteve na ambulância que levou o cadáver (contrariando o CNT) contou para a agência AP que ele tinha um tiro no peito e outro na cabeça, enquanto comemorava: “Vocês não podem imaginar minha felicidade, a tirania acabou. Agora o povo líbio pode descansar”. À noite, o premier do novo governo, Mahmoud Jibril, afirmou que Kaddafi foi morto após a captura, em fogo cruzado com seus partidáros.

Desde o início da guerra civil, em fevereiro, foram frequentes notícias rapidamente desmentidas – depois de comemoradas com muitos tiros para o ar –, de vitórias rebeldes e captura de -membros da família Kaddafi e outras figuras do antigo regime, de modo que as mídias e agências de notícias mais sérias foram cautelosas. O site do jornal britânicoGuardian, por exemplo, esperou por mais quatro horas – e um pronunciamento oficial do primeiro-ministro britânico, David Cameron, anunciando a morte – para publicar o obituário do ex-líder e mudar o título da notícia de “Kad-dafi está morto, segundo o Conselho Nacional de Transição”, para simplesmente “Kaddafi foi morto e Sirte caiu”. Nesse meio-tempo, foram divulgados vários vídeos e fotos. Um deles mostrava o ex-ditador capturado e vivo, nos outros, aparece já morto. Em um deles, o cadáver é carregado por rebeldes entre tiros para o ar. Mas mesmo depois disso, sites kaddafistas continuaram a afirmar que os vídeos eram forjados e o líder estava vivo e longe de Sirte.

Os informes sobre o destino de seus filhos e outros integrantes de seu governo foram ainda mais confusos. Dezessete lideranças do regime deposto, segundo o CNT, teriam sido mortas ou capturadas em Sirte. Entre os capturados vivos estariam os filhos Mutassim e Saif al-Islam e o porta-voz Moussa Ibrahim. Informou-se depois que os dois filhos estavam mortos e também que Saif havia fugido. Pormenor importante, pois era o presumível sucessor do pai e poderia tentar continuar- a luta. Às 21 horas locais, enquanto os partidários do novo regime -comemoravam nas ruas de Trípoli, o CNT confirmou oficialmente a morte de Mutassim e surgiram fotos de seu corpo.

Duas horas depois de Cameron, também Barack Obama se pronunciou, com frases que talvez tenham embaraçado até alguns de seus aliados: “Lembramos de todos esses americanos perdidos para as mãos do terror de Kaddafi”, depois de vários anos de reconciliação com seu regime, nos quais a CIA até o ajudou a caçar e torturar dissidentes agora no CNT.

“Vemos a força da liderança americana pelo mundo”, proclamou, dizendo ter posto a Al-Qaeda no “caminho da derrota” (discutível), estar “acabando” a guerra no Iraque (ainda mais duvidoso) e “começado a transição” (catastrófica) no Afeganistão. O honesto, mas indizível, ainda mais em período eleitoral, seria afirmar que vemos a força das bombas e dos aviões estadunidenses pelo mundo, mas mesmo assim ela não é capaz de impor aos acontecimentos os rumos que Washington desejaria, muito menos restaurar sua liderança.

Em 20 de setembro, o ex-presidente afegão Burhanuddin Rabbani, ao negociar com o inimigo em nome do governo protegido pela Otan, foi assassinado em atentado suicida do suposto emissário do -Taleban, denunciado em 2 de outubro, por Cabul e Washington, como um paquistanês -incitado e ajudado pelo serviço secreto de Islamabad, oficialmente tido como aliado.

A Líbia pode ser outro Afeganistão. Os grupos que reconhecem o CNT incluem desde militantes da Al-Qaeda até monarquistas comprometidos com as transnacionais do petróleo, passando por militares e ministros que estiveram com Kad-dafi até a penúltima hora. Como o ex-comandante militar “rebelde” Abdel-Fattah Younis, morto em julho por “companheiros” insurgentes de orientação fundamentalista. São mínimas as chances de estabilidade, para não falar de democracia: um relatório de 13 de outubro da Anistia Internacional denuncia os abusos da “Nova Líbia” contra supostos kaddafistas, líbios negros e imigrantes africanos.

Assim como Bush júnior na Ásia Central e no Golfo Pérsico, o governo Obama decidiu agarrar a oportunidade de conquistar um satélite e uma base de operações a um custo em tese baixo, desta vez na África, cujos recursos disputa com a China. Isto se articula à criação do Comando Africano no Pentágono, ao envio de tropas dos EUA para apoiar o regime de Uganda – ditadura nada melhor que aquelas que Washington se vangloria de ter ajudado a derrubar – e à ampliação da guerra na Somália com apoio do Quênia. Mas a Líbia já custou mais do que o planejado (oficialmente, 2 bilhões de dólares até agora) e esse envolvimento pode acabar tão catastrófico, inclusive para a economia, quanto o das malfadadas intervenções anteriores.

http://www.cartacapital.com.br/internacional/e-o-fim-ou-so-o-comeco

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